O caso Felca e a adultização digital
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Por Márcio Thadeu Silva Marques – Promotor de Justiça (MPMA) e Professor da ESMP/MA
A partir de uma postagem em rede social, reportando a exposição de crianças e adolescentes a situações em desacordo com sua maturidade e formação biopsicossocial, o tema da adultização infantil foi para o trending topics da pauta social, política e jurídica no Brasil. Já não sem tempo. Mas, o que é adultização infantil?
Antes, porém, um parentêsis: meninos, na arte medieval, eram “simplesmente reproduzidos numa escala menor”, distinguindo-se dos adultos apenas por seu tamanho (ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Trad. Dora Faksman. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981. p. 51).
Cotejando essas duas descrições; – a da epígrafe do texto e da referência expressa no parágrafo anterior – ; é de se indagar: estamos em um movimento de desconstrução conceitual da infância[i]?
A adultização precoce não é tema moral, ou de costumes, e nem se restringe à abominável questão da exploração sexual de crianças e adolescentes. A adultização infantil é a negação da doutrina da proteção integral dos direitos infantojuvenis. É negação, portanto, de direitos humanos para quem o texto constitucional efetivou promessa de permanência e intangibilidade, com prioridade absoluta, tornando meninas e meninos credores das ações da família, da sociedade e do Poder Público. O ECA, explicitando o art. 227 da Constituição, reconhece, para crianças e adolescentes, o direito à liberdade, respeito e dignidade como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (art. 15). O direito ao respeito “consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais” (art. 17), cabendo a todos “velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (art. 18).
Assim, adultização precoce ocorre quando se busca eliminar o direito ao desenvolvimento infantil, desrespeitando a capacidade cognitiva, emocional e afetiva própria de cada etapa de amadurecimento, em detrimento do interesse superior da criança e do adolescente.
O móvel para esse incentivo à precocidade decorre, nestes nossos tempos, da inversa proporcionalidade entre a faixa etária das vítimas e a capacidade de se lhes explorar para fins monetários ou de abuso de seus direitos de personalidade, como a imagem, para fins criminosos. Portanto, a adultização precoce pode ser identificada como base para o trabalho infantil ; – inclusive o artístico, que hoje também alcança as redes sociais – ; para a incorporação deste extrato populacional no mercado consumidor e de práticas publicitárias e de comunicação mercadológica abusivas ; – como nos anúncios de atividades divorciadas do interesse infanto juvenil, como as bets, por influencers mirins, ou visando a indução para a compra de acessórios virtuais, skins, por exemplo, em jogos eletrônicos manipulados por algoritmos treinados para o afrontar da hipervulnerabilidade dessas crianças – ; negando os direitos estabelecidos pelo CDC (art. 37, § 2º e, pela interpretação constitucional a partir do art. 227, do art. 4º, I da Lei consumerista, além da Resolução CONANDA 163/2014). Há adultização infantil imposta ao próprio desenvolvimento fisiológico patrocinada pela indústria cosmética, ao ofertar produtos de maquiagem que, por seus componentes, “(conservantes, fragrâncias e até filtros solares, por exemplo) podem levar a prejuízos à saúde infantil, como alguns efeitos hormonais ou toxicidade neurológica”, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, no link https://www.sbp.com.br/pediatria-para-familias/cuidados-com-a-saude/uso-de-cosmeticos-em-criancas-o-que-os-pais-devem-saber/, capturado em 12/08/2025.
As consequências para as crianças seguem desde aquelas provocadas pelo shareting, denunciado pelo UNICEF (Noruega) como uma das novas formas de violência, por negar vigência ao artigo 16 da Convenção sobre os Direitos da Criança, que garante a toda criança o direito à privacidade[ii]. A busca por engajamento gera situações de vulnerabilidade, como nos desafios e trends referentes a atividades que expõem a vida e a segurança de crianças e adolescentes, propiciando estupros virtuais e incitação a suicídio e automutilação, sem qualquer moderação das empresas.
Na mesma semana em que houve a provocação sobre o tema nas redes sociais, mais de trinta projetos de lei foram apresentados na Câmara de Deputados para o enfrentamento da adultização precoce[iii]. A imensa maioria trata de alterações no ECA, no Marco Legal da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados, estabelecendo tipos penais e sanções administrativas com base em regulamentação a ser editada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (com o apoio, na construção dessa regulamentação, do CONANDA e da Secretaria Nacional dos Direitos do Consumidor), na explicitação de que a participação de crianças em redes sociais não pode, em nenhuma hipótese, ser monetizada, bem assim na definição da responsabilidade algorítmica para punir a divulgação das bases dessa exploração de trabalho infantil, mesmo aqueles constantes da Lista TIP da OIT, como a prostituição e a pornografia infantis. A vedação da propaganda infantil pelo CONAR precisa ter a cogência de norma legal material, o que também é tangenciado pelos PLs que se avolumam sobre o tema.
Mas é preciso ir além, utilizando os instrumentos que já dispomos. Desde a definição pelo STF, no julgamento conjunto dos REs 107396 e 1057258, da exigência de uma postura preventiva e proativa pelos provedores de internet, inclusive para a exclusão de postagens em situações graves, como a violência sexual, nos termos do art. 227, § 4º, da Constituição, por exemplo, se tem caminho aberto para o controle desses conteúdos ilícitos, mesmo no campo administrativo, sem exigência de prévia tutela jurisdicional. Por outro lado, é preciso pacificar a compreensão de que qualquer atividade de crianças e adolescentes em redes sociais que possa levar à monetização caracteriza trabalho artístico infantil, e, nestes termos, é de ser submetida a prévio controle judicial, por alvará (ECA, art. 149, I, “a”), nos Juízos da Infância, bem assim, quanto à segurança e saúde laboral decorrentes, pela Justiça do Trabalho. Finalmente, a fronteira tecnológica da internet, inexistente à época da Constituição de 1988 como base para espetáculos públicos, faz incidir o fenômeno da mutação constitucional (ou, pelo menos da interpretação conforme a partir do art. 227) da amplitude do poder de classificação indicativa previsto pelo art. 220, § 4º da Lei Fundamental e explicitado pelo art. 74 do ECA, para nele incluir a produção audiovisual e de outros formatos em redes sociais.
A oportunidade de combater essa cultura adultocêntrica que busca eliminar a infância como fase indispensável ao desenvolvimento humanos é, sem dúvida, o maior de todos os desafios nessa área. A pauta da adultização precocce e seus deletérios prejuízos parece sinalizar o caminho para este fim. É preciso perseverar. A indignação nacional tem que durar bem mais que um postagem no TikTok.
[i]Não na perspectiva descontrutivista de Jacques Derrida, que visa eliminar a hierarquia entre conceitos binários e rígidos, mas sim na de negativa do processo histórico da noção de criança que, no plano jurídico, é muito bem definida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL.Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil / Secretaria de Educação Básica. – Brasília : MEC, SEB, 2010, p. 12), aprovadas pela Resolução CNE nº 5, de 17/12/2009: Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura
[ii]Conforme o link https://anti.as/stop-sharenting , capturado em 12/08/2025.
[iii]Resultado a partir de pesquisa no site da Câmara dos Deputados, em 12/085/2025, apresentados no link https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=2&order=relevancia&abaEspecifica=true&filtros=%5B%7B%22ano%22%3A%222025%22%7D%5D&q=adultiza%C3%A7%C3%A3o&tipos=PL.
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